No fim, cancelaram o treino classificatório da Fórmula 1 lá pras bandas do Japão. Só por causa de uma chuvinha. Uma chuvinha de merda, como diria Noé naquela anedota do cara que chegou ao céu depois de morrer numa enchente. Os caras da F-1 são uns bananas, isso sim. Quem critica precisa fazer melhor, e eu lembro de ter feito bem melhor que isso quando piloto de kart fui, em 1994.
Afirmar que fui piloto de kart é um exercício de eufemismo, claro. Primeiro, pelo “piloto”. Quando parei de correr porque as economias haviam acabado, naquele mesmo 1994, ainda tomava mais de um segundo por volta dos caras que ganhavam corridas. Depois, pelo “de kart”. Meu equipamento, comprado de oitava mão, consistia numa porção de chassi cercada de solda por todos os lados, pneus que eu pegava no lixo do kartódromo de Cascavel e motor V4 com o mínimo de taxa de compressão. Se empurrasse o kart para trás com o pé, ele obedecia. Nessas condições, eu até que não virava tão mal assim.
Enfim, era o que havia, e eu achava o máximo estar no kartódromo todo sábado treinando. Principalmente quando aprendi a baixar tempo. Eu era tão ruim que, num determinado mês, consegui melhorar meu tempo em exatamente um segundo por volta a cada sábado, e havia margem para isso. Quem não me deixava desistir daquilo era o Milton Serralheiro, um sujeito que já citei aqui várias vezes. Era o cara que se prestava a despender seus sábados à beira de uma pista avaliando as besteiras que eu fazia e me passando instruções para evitá-las. Ele ainda tinha fé que eu poderia ser bom naquilo. Nos tempos de hoje, seria um coach. Quando eu diminuía a quantidade de barbeiragens - e havia umas tardes inspiradas em que isso acontecia -, Milton também ia para a pista com seu kart.
Treinávamos todo sábado, exceção feita àqueles em que Milton estava nalgum autódromo disputando suas peleias de Speed Fusca e Fórmula A, ele ganhava muitas corridas nas duas categorias. Num sábado de chuva qualquer passei pela casa dele para saber em que boteco iríamos tomar algumas cervejas e, de cara, já levei uma dura. “Cadê o capacete, cadê o macacão, cadê isso, cadê aquilo?”, cobrou, como se fôssemos para a pista. Falei que não iria treinar, a pista estava molhada. “É claro que vai. É a melhor coisa para aprender”. E, se ele falou, estava falado. Ou falido.
Lá fomos nós, levando todas as tralhas numa D20, para o kartódromo. Já não estava mais chovendo, embora o aguaceiro na pista justificasse alguns dos meus temores. Ah, e lembram os pneus que eu apanhava no lixo? Eram todos slick, pelo menos quando fabricaram. Milton dizia que eu reciclava pneus, porque trafegava tanto fora do traçado ideal que apanhava todos os pedaços de borracha espalhados pela pista. O diâmetro dos meus pneus aumentava a cada sequência de voltas, algo assim.
E fui para a pista molhada, com meu kart soldado calçado com pneus slick pra lá de velhos. Tremia mais de medo que de frio. No hairpin que traz para a reta oposta, uma curva à direita cuja tomada exigia uma freada forte, meu kart esparramava lá para o lado esquerdo da pista. Milton estava em pé em cima da zebra interna, sinalizando que era por ali que eu tinha de passar. Entendi a ordem, embora não a tivesse conseguido cumprir. Sem problemas, outras voltas viriam. O treinador ficou ali mesmo, a garoa voltando e ele ali, indicando com gestos que eu tinha de atacar a zebra interna.
Veio a segunda volta, quase saí da pista para o lado esquerdo naquela curva à direita. Na terceira, outra esparramada. Na quarta, idem. Milton não arredava pé dali. Naquela volta, rodei em outro ponto da pista. Caixa d’Água, que era o mecânico que me atendia nos treinos, levou algum tempo até vestir sua capa de chuva para ir lá me ajudar a devolver o kart à pista. O que deu a Milton o tempo necessário para uma artimanha que, em sua mente má intencionada, poderia dar certo.
Quando cheguei de novo ao hairpin, a sexta curva do kartódromo de Cascavel, já esperava ver o Milton ali. Vi-o, de fato. E vi, também, que ele aproveitou aqueles minutos para encher a pista com pneus que retirou das barreiras de proteção. Deixou livre apenas a faixa por onde eu deveria passar – o que não atrapalhou ninguém, já que o único que se dispôs a encarar aquele asfalto molhado fora da época de corridas fui eu mesmo.
Mas havia pneus onde o kart insistia em esparramar na pista. Joguei o peso do corpo no pedal da esquerda, dei um movimento brusco no volante e bingo!, consegui fazer a curva. Foi suja, definamos assim, a artimanha do Milton. Mas eficiente. Na volta seguinte, já sabendo da existência dos pneus, vim preparado. Acho até que freei um pouco antes do ponto ideal, mas precaução e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém, e o hairpin foi mais uma vez contornado.
Foi a última vez. Na volta seguinte, já munido de uma autoconfiança indevida, vim na minha pilotagem habitual. Tomei a curva, o kart esparramou, bati naqueles pneus todos. Voou pneu pra todo lado. E alguns dos pontos de solda do meu chassi, fabricado em 1987, romperam-se. Era o fim daquele treino. Era o fim da história daquele kart, que nunca mais voltaria à pista. Foi para o lixo, acho, o chassi. Depois comprei outro, que rendeu algumas outras histórias e não mais que isso.
Claro que a chuva que enfrentei naquele sábado de 1994 era clima desértico perto do pé d'água da última madrugada em Suzuka. Meu desafio, no entanto, foi maior do que o reservado aos caras da F-1. Eles, ao menos, sabem pilotar.
Meus tempos de kartista, aliás, viraram papo numa churrascaria em Porto Alegre, dias atrás. À mesa, entre tantos amigos, estava Maycon Zandavalli, hoje piloto de ponta no Superbike Series Brasil. Àquela época, em que todas as categorias do Campeonato Paranaense de Kart tinham pista liberada ao mesmo tempo para treinos informais na pista de Cascavel, Maycon era um pirralho de nove ou dez anos que começava a fazer sucesso no esporte.
Contou-me Maycon que havia, entre os fedelhos que despontavam nas categorias Cadete e Cadete Especial, um sinal combinado para os momentos em que eu fosse à pista. Todos eles deixavam de lado o que estavam fazendo e corriam para o meio do circuito para me ver pilotando. “Era muito engraçado, você entrava nas curvas bem assim”, recordou, imitando com as mãos o movimento que eu fazia no volante. Que pareceu-me tão ridículo quanto familiar.
Também achei engraçado o relato, mas naquele momento, depois de ter roído um bom matambre, decidi-me a demitir Maycon. Foi quando lembrei que sou eu quem trabalha para ele.
1 comentários:
Por onde anda o Milton. Sumiu das pistas.
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