Dia desses, na sessão “passando a limpo” que Juli e eu fazemos ao fim do dia, em que resumimos o que de digno de nota aconteceu no dia de cada um, e que acabei de batizar, ela manteve um já famigerado ar de indignação para um comentário que dela eu jamais esperaria: “Não vão liberar a gente quando tiver jogo do Brasil”.
Quê? Liberar? Jogo do Brasil? Bebeu e não me convidou? Não entendi bulhufas.
Didática, ela explicou, e quem leu até aqui já entendeu, eu é que demoro a pegar na partida. A empresa onde trabalha, uma farmácia de manipulação, vai manter expediente normal de trabalho nos dias e períodos em que a seleção brasileira estiver em campo na Copa do Mundo. Seu patrão, deveras benevolente, prometeu um televisor em alguma das dependências da casa para que todos possam ver as partidas.
As cápsulas, soluções e outras manufaturas deixarão de ser produzidas enquanto, noutro gomo do mundo, atletas que não frequentam nossos cotidianos estarão praticando esportes, alguns deles empreendendo demonstrações sublimes de talento, alimentando seus egos e suas contas bancárias. Na agência onde trabalho, não deverá ser diferente, pautas deixarão de ser negociadas e a produção de materiais específicos será protelada. No seu trabalho, não se iluda, também haverá cortes hipnóticos como esse. Quem não trabalha vai adiar o exercício do ócio para grudar os olhos na televisão, que enoja ao sentenciar a obrigatoriedade de se torcer por bons resultados do Brasil. Chegará o dia em que poderemos torcer por vitórias da Itália, da Nova Zelândia, da Zâmbia, das Ilhas Maurício.
Somos um país que para para ver um jogo de futebol (somos, também, um país atingido na fronte por uma reforma linguística que nivelou o idioma por baixo, que me faz lamentar a correção da construção “para para” e que provavelmente impediu você, caro leitor, de identificar uma ocorrência verbal no título destas linhas mal traçadas). E outro, e mais outro. Algumas poucas exceções hão de me contradizer, sobretudo num mapa quadrilátero lá do Centro-Oeste, gente para quem a apatia de uma nação que decorre de jogos de futebol dá margem a um ritmo frenético nas práticas condenáveis que lesam 190 milhões de patrimônios e a honra da totalidade.
Serei crucificado por isso, mas não classifico como nada a mais que uma tremenda babaquice a devoção que se constata por conta de um torneio esportivo, seja ele a Copa do Mundo, uma Olimpíada, um campeonato de automobilismo ou qualquer coisa do gênero que se queira adir à lista.
Seu salário ou o meu não vão subir um único centavo por um placar futebolístico construído num gramado sul-africano; os índices de imoralidade, violência, a impunidade que devia ser estampada na flâmula verde-amarela não vão cair se os comandados de Dunga – será Dunga, até junho? – obtiverem pontos suficientes para avançar cada fase. Serão vitórias e derrotas daquele grupo de garotos, alguns já nem tão garotos assim, com as quais não terei nada a ver. Se dependessem de mim, não iriam à Copa, sorte deles eu ser um zero à esquerda nesse âmbito de influência.
O que me lembra que não assisti à final a Copa de 2002, a do “nosso” pentacampeonato. Na véspera, eu havia disputado a final de um festival de música na cidade de São Pedro do Iguaçu. Cantei sozinho, empatei em 92,7 pontos com a dupla Sônia & Lilian na primeira posição. O júri optou por não convocar as apresentações para desempate, deu às moças o troféu do primeiro lugar e o cheque um pouco mais valioso que o meu, porque afinal elas teriam de dividir seu saldo em dois, e aplaudi a decisão mais acertada que vi numa competição de critérios tão subjetivos quanto os de um festival de interpretação musical. E meu segundo lugar teve gosto de vitória, uma vitória minha e de ninguém mais, e a Sônia e a Lilian tiveram também a vitória delas. Comemorei até tarde a madrugada, aproveitei a festa até o fim, cheguei em casa com o dia já amanhecendo, não acordei para ver o jogo de futebol na TV, e os brasileiros ganharam dos alemães, uma vitória deles, jogadores, e de ninguém mais.
Não herdei de meu saudoso pai a aversão a espetáculos esportivos, motivo pelo qual eu mesmo estranho as posturas que manifesto a respeito. Trauma de infância, penso. Na Copa de 82, eu no pré-escolar mobral, liberaram-nos para a volta à casa na hora do recreio, eu degustando um sorvete-seco, já tendo no braço aquele reloginho de plástico que vinha porcamente enterrado na massa do doce, e fiquei puto, porque adorava a escolinha – criança tem disso... – e não fazia a mínima ideia de que estava perdendo duas horas de aprazíveis atividades porque, nalgum lugar na Espanha, o time de Zico e Sócrates encaminhava-se de alguma forma para a derrocada no Sarriá.
Somos, como tantos outros, um país que para pela Copa. Somos um país que para por qualquer coisa. Que para de agir, de pensar, de lutar sob qualquer pretexto. Somos uns vagabundos morais, essa é a verdade
Quem bem define essa presepada toda é minha irmã, em sua mensagem pessoal no MSN: “Não acredito como passou rápido esse ano...”
2 comentários:
Perfeito Luc, concordo 100% com você. O brasileiro, na verdade, não gosta do batente. Somos o país dos feriados, das folgas, dos pontos facultativos. Qualquer coisa se faz aqui para deixar para depois, somos o país do futuro, por isso, as coisas devem ser feitas no futuro, depois. Faço aniversário hoje, e ouço essa estória há quase 50 anos.
E mais uma vez conviveremos com o hino da copa, um sambinha oportunista que será vendido pela Som Livre, com os guerreiros, que deveriam ser simples atletas, desportistas e com toda aquela babaquice orquestrada pelo mercado publicitário.
Sinceramente, gostaria de ver um novo presidente assumir o cargo e logo de cara dizer ao mundo: O Brasil agradece, mas abre mão de organizar a Copa e a Olimpíada. Se os Srs. Ricardo Teixeira e Carlos Nuzman quiserem organiza-los por contra e risco próprios, sorte a eles. Ah como eu adoraria ouvir isso, mas não vai acontecer, perdem-se votos com isso. Bom, mais um oito de maio está acabando e só para avisar. Fiz finalmente um twitter, não sei ainda exatamente para quê nem como funciona, mas fiz: @alanmagalhaes Abração.
Concordo também!!! Que papo besta esse de parar tudo por causa de... Futebol?! Ah, mas é o Brasil. E daí? Grande coisa. Temos atividades mais importantes para fazer. Além do mais, que na época do tal "desastre de Sarriá" se parasse para ver a seleção na TV, vá lá. Mas hoje??? Em tempos de internet, twitter e iPad?? Me poupe... Vão trabalhar seus vagabundos. Eu, particularmente, estarei no meu posto de trabalho na hora de cada um dos jogos e atendo no meu fone comercial também. Ah! E se Deus quiser, o Dunga cai na primeira fase...
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