17h22 de quarta-feira. Faz pouco, 10 ou 15 minutos, que deixamos o terminal rodoviário em Toledo. Resolvi fazer de ônibus a viagem a São Paulo, desta vez, e de Cascavel, cidade onde vivo, ou sobrevivo, não saem ônibus-leito para São Paulo. Os convencionais, agora chamados pelas empresas de ônibus de “executivos”, judiam do pescoço do passageiro. E vão para o Sudeste apinhados de sacoleiros, e perde-se mais tempo nas invariáveis paradas para fiscalização da Polícia Rodoviária que com a viagem propriamente dita.
Eu havia relatado aqui, há instantes, alguns episódios de que participei anos atrás, mas deletei-os. A ideia é relatar, para consumo interno, a viagem, e não agruras policiais. Ademais, casos da ação corrupta da polícia à beira-estrada não são privilégio meu, todo mundo tem suas coisas para contar, e normalmente quem conta omite o fato de ter oferecido vinte ou cinquenta pratas para o guarda aliviar um excesso de velocidade ou uma ultrapassagem sobre faixa contínua. Seria no mínimo deselegante comentar coisas assim, até porque há policiais corruptos, o que não significa que a instituição policial, ou que todos os que dela fazem parte, o sejam. Só haverá policial corrupto se houver infratores alimentando-os. Só haverá traficantes enquanto houver usuários de drogas. Só haverá travestis enquanto houver senhores distintos que os procuram às escondidas nas noites e nos dias para, hã, fugir da rotina. Sempre haverá traficantes de drogas, travestis, policiais corruptos. A diferença é que não há motivo para se desprezar os travestis. A menos que você dê-lhes a deixa, eles jamais vão lhe causar prejuízo.
Mas desviei-me completamente do que comecei a falar, que era da viagem de ônibus, algo que eu não fazia há muito. Quer dizer, fiz sim, há poucos meses, um episódio atípico e de última hora, também tendo São Paulo como outra ponta do trajeto. Cheguei a Cascavel segunda-feira da manhã e baixei direto na massagista, ainda bem que a Juli conhecia uma, que colocou tudo em seu devido lugar e meu cadáver voltou a funcionar. Eu nunca havia ido a um massagista.
Portanto, nada mais de ônibus executivos. Como não há leitos saindo de Cascavel para a maior cidade do país, fui a Toledo, e lá embarquei no carro número 2300 da BrasilSul. Muito boa, a empresa, é minha primeira impressão. Tem até serviço de bordo, que é melhor que o da Gol e o da TAM. São 17h46, agora, o motorista entrou numa cidadezinha. Pergunto à senhora ao lado onde estamos. Dona Plínia, a senhora, que conversa animadamente com sua filha, ou sobrinha, não sei. Assis Chateaubriand, é a cidade. E como fala, dona Plínia!
Aproveito a parada em Assis para passar a mão na mochila e de lá sacar os DVDs que trouxe para assistir durante a viagem. Num box, a sétima temporada de “Friends”, que ganhei da Juli e do Juninho em 2007, foi presente de Dia dos Pais, ganhei quando voltei de Pernambuco, onde passei meu primeiro Dia dos Pais, bem longe do moleque; no outro, a primeira temporada do bem sacado “The Mentalist”, que ganhei do Rodrigo Borges numa promoção feita no Twitter.
Estamos saindo de Assis Chateaubriand. O laptop novo tem bateria para muitas horas e, mesmo quando acabar, posso conectá-lo à energia elétrica no próprio ônibus. O papo da dona Plínia está divertido, até, mas não é comigo. Ela e a moça que a acompanha começam agora a falar em peidos, é algo pouco animador para quem está com elas numa caixa de aço fechada e sem janelas.
Seis em ponto, o motorista pôs para rodar nos monitores do ônibus – tem um bem na minha fuça, peguei a primeira poltrona-cama da fila individual – um filme da Warner, parece que é chato. Começa com um alpinista e uma narração em off falando de alguém que morreu, agora aparece o Morgan Freeman como mecânico que dá manutenção em um carro enquanto responde a uma gincana informal com um colega, nomes de presidentes americanos e a polêmica sobre quem inventou o rádio, se Marconi ou Tesla. O personagem de Freeman diz que foi Tesla, o que avaliza o que aprendi na faculdade, embora Marconi, que chamava-se Guglielmo, tenha recebido prêmios e o reconhecimento histórico pelo advento. Freeman, agora, recebe um telefonema com uma notícia ruim, ainda não revelada. O motorista deu um pouquinho mais de volume ao filme nos alto-falantes, dá para ouvir bem, agora. Vou suspender os episódios de “Friends” e ver esse filme, tem o Jack Nicholson, também.
Dona Plínia chamou a moça de filhota, o que me leva a crer que não é sobrinha, mas filha. Daqui a pouco tem uma parada para o lanche em Campo Mourão, o motorista já avisou. Tomara que seja no restaurante Tio Patinhas. Eles servem uma pizza em fatias que é deliciosa. São 18h12, vou fechar o laptop.
Sete e um da noite, ou da tarde, é horário de verão (não brinca!) e o sol ainda está alto. Depois de Assis, houve paradas rápidas também em Jesuítas e Formosa do Oeste, que suscitaram preocupações quanto ao ritmo da viagem. Mantenho todos os atributos que já citei sobre o ônibus e o serviço da BrasilSul, com a ressalva de tratar-se, noto, de um pinga-pinga. Agora estamos na estrada, de fato.
O filme é bonzinho, daqueles que minha mãe define como “filminho água-com-açúcar para limpar a cabeça”. Ainda não sei seu título, mas os personagens de Nicholson e Freeman, ambos condenados pelo câncer, resolvem sair mundo afora fazendo tudo que nunca puderam fazer na vida inteira. Os dois criaram laços durante a convivência no quarto hospitalar, Nicholson tem dinheiro a rodo, se dispôs a bancar toda a aventura do fim de suas vidas. Fizeram uma lista desses desafios – pular de paraquedas, dirigir determinado carro, essas coisas. Dá para tirar algumas lições boas desses enredos, sem muito esforço. Dona Plínia comentou há pouco com a filha que, seguindo a lógica do filme, terá de virar lésbica. Caíram na gargalhada, as duas, e a dona Plínia arrematou dizendo até que o lado masculino dela é feminino, algo assim.
Manuseando o DVD de “Friends” para deixá-lo pronto, já pensando nas horas que virão, vejo que trouxe comigo, no laptop, o CD interativo dos Smurfs que o Luc Jr. ganhou de um coleguinha da escola semana passada, na festinha de aniversário. Fez cinco anos, meu menino. Estava lidando com os jogos e atividades do tal CD antes de sairmos de casa, ele foi junto com a Juli me levar a Toledo. Fiquei com pena de ter trazido os Smurfs na viagem, ele gostou bastante do CD, embora os computadores que ficaram em casa, dois netbooks, não lhe permitiriam utilizá-lo. Vou cuidar bem dos Smurfs pra ele. De outro amiguinho ele ganhou algo que imagino ser também um disco interativo, que traz impressa a imagem do Homem de Ferro.
Nicholson, que no filme tem sobrenome Edward, e Freeman, ainda não atinei o nome dele, estão agora visitando pirâmides. E o ônibus sai da estrada e adentra outra cidadezinha. Deve ser Goioerê, todos os carros lá fora têm essa indicação em suas placas. Essas paradas me trazem um infortúnio a mais – hoje é, em termos práticos, o primeiro dia de minha tentativa de me tornar um ex-fumante. Ontem fumei dois cigarros. Hoje, nenhum. A vontade é grande e cada parada dessas é uma tentação. Não trouxe cigarros na viagem, é um trunfo meu. Poderia comprá-los em qualquer parada, mas vou resistir. Para passar o resto da vida sem fumar, tenho de ficar um dia sem fumar. Que é hoje, 23 de novembro de 2011.
Durante a parada, o motorista traz mais água mineral. Dona Plínia se assusta com a aproximação dele, parece conhecê-lo, e faz um comentário que esclarece parte da questão de três parágrafos atrás. “Ô, seu Gato, olha o filme que você põe para uma cancerosa assistir”. Vejo que ela conhece Estevão, o motorista, e que “Gato” é o apelido pelo qual o trata. Tem câncer, o que me choca um pouco. Posso capitalizar esse choque a meu favor no propósito pelo fim do tabagismo. Faço um comentário, como que para entrar na conversa, e ela arremata: “Esse filme é a história da minha vida. E eu levo a vida assim, rindo e brincando”. Acho que vamos conversar mais durante a viagem. São 19h21 e estamos deixando Goioerê. A próxima parada será em Campo Mourão. Ainda penso na pizza.
Freeman discutiu com Nicholson e voltou para casa, janta feliz com seus familiares, enquanto Nicholson, parece que também em sua casa, irrita-se, sem companhia alguma. Ao lado, dona Plínia diz à filha que, ultimamente, canta parabéns em velório, e fala de determinada festa de aniversário cujo bolo foi decorado com vários pênis de chocolate. E, enquanto eu penso na pizza, ela diz à filha que vai tomar sua injeção assim que chegar a Campo Mourão.
19h28, descubro que Carter é o nome de Freeman no filme. Em momento romântico com a esposa, ele sofre um ataque. Edward, de volta a seu trabalho, interrompe uma reunião importante para compartilhar, sem dar créditos, algo que aprendeu com Carter. Um telefonema o faz saber do ataque sofrido por Carter, ele larga tudo e corre para o hospital. Dá-se mais valor a coisas aparentemente bobas em momentos difíceis.
19h35. Carter morreu. E uma das metas da lista, enumerada por Edward, que era beijar a mais linda garota do mundo, é cumprida. Ele beija a neta que não conhecia, teve uma vida pouco convencional, jamais havia tido contato com a filha, sequer sabia que tinha neta. O alpinista do começo do filme, que volta à cena, é o assistente de Edward. Cumpre uma das aventuras que os dois não tiveram tempo para conseguir. Leva, numa lata de café que teve lá sua relevância na história, as cinzas do patrão, que também foi-se. Junta-a, no topo da montanha, a outra, onde já jazia Carter, ou suas cinzas. “Antes de partir”, é o nome do filme, apareceu agora. 19h40. Abdico da sensibilidade para, enfim, ver “Friends”.
20h16, e a esperada parada para o jantar. No Tio Patinhas. 25 minutos aqui, é o que anuncia o motorista. Agora, já 20h45, estamos deixando o restaurante. A pizza estava com muito molho, o que pode me causar desconfortos no transcorrer da viagem. Dona Plínia, que jantou pães-de-queijo, acomoda-se sob as cobertas fazendo piada, diz que as meninas de hoje perdem a virgindade na maternidade, com a chupeta. Estou com os óculos escuros na cabeça e penso que ali eles permanecerão até a chegada à Barra Funda, posto que esqueci de trazer o estojo da Mormaii e temo estragá-los se os puser na mochila. Vou terminar de ver o episódio de “Friends”, aquele em que todos os personagens fazem 30 anos, e depois inaugurar os DVDs de Patrick Jane.
Caramba, faz três minutos e meio que saímos do Tio Patinhas e paramos de novo. Na rodoviária, agora. Nesse ritmo, só chego a São Paulo depois das corridas de domingo.
23h36. “The Mentalist” é muito bom. Vi três episódios a fio, já estava até deitado em posição inversa na poltrona, já que a tela do laptop, a essa altura, é a única luz acesa na cabine – assim, ficava virada para o parabrisa. Não estava lá tão confortável. Os colegas de viagem parecem estar aproveitando-a melhor. Todos dormem. Vou imitá-los.
Imitei-os, e bem. São 7h17 de quinta-feira, escrevo do táxi que me leva a Interlagos. Ao bairro, e não ao autódromo, que lá não tenho nada a fazer hoje. Talvez dê uma passada à tarde, nada obrigatório. O taxista diz, otimista, que se as vias estiverem livres a gente chega ao endereço em meia hora. Dou o endereço a uma central antes de contratar a corrida, e embarco no táxi já com um boleto e o valor da corrida já estipulado, é uma prática que inibe a ação de taxistas espertinhos e deveria ser estabelecida por lei para qualquer cidade. Algumas que conheço, em especial.
Pelo rádio do táxi, na CBN, ouço notícia sobre polêmicas na legislação de trânsito de São Paulo, algo sobre placas de motos, e alguém reclama alegando – com razão, ao que me parece – que o Estado não tem competência para dar pitacos na legislação de trânsito, que tem âmbito federal. A lei do trânsito é uma merda completa no país todo, intuo.
Quando uma viagem termina ao amanhecer, sou sempre um dos últimos a desembarcar, a isso as explicações são dispensáveis. Enquanto ajeitava meus pertences e a mochila, ainda dentro do ônibus, vi pela janela dona Plínia e sua filha indo embora com suas malas, suas preocupações, provavelmente seu bom-humor. Durante uma parada em Londrina, percebi que Estevão, o Gato, é irmão ou cunhado de dona Plínia, tio da garota, o que também explica a desenvoltura com que os dois faziam brincadeiras a cada parada, e foram várias. Delas, acho, nunca mais terei notícias, a menos que minha dupla sertaneja, Luc & Juli, consiga alguma expressão.
É que no início da viagem, ainda em Toledo, fizemos uma brincadeira boba que acabou falando de música sertaneja, era algo sobre um passageiro incomodar o outro, e aproveitei a deixa para dar a elas um cartão da dupla. Olharam, acharam legal, perguntaram quem é a moça linda na foto comigo – nessas palavras, o que me deixou bastante orgulhoso, claro – e perguntaram se eu estava só mostrando o cartão ou se elas podiam guardá-lo. Levaram, claro, e no compartimento da bolsa de uma das duas, a partir de agora, Luc & Juli também fazem parte das vidas da senhora e sua filha. Torço para dona Plínia conseguir manter seu pique diante do problema que tem, que é bem maior e significativo que qualquer dos problemas que me fazem reclamar tanto da vida.
Cheguei, já avisei o pessoal lá em casa que a viagem terminou e terminou bem, é um pequeno rito do lar que cumpro com certo rigor. Daqui a pouco estarei em minha outra casa e vou poder dar um abraço no Pedro e outro na Natália. É algo que quero, preciso, fazer há vários dias. São eles a minha família aqui em São Paulo, embora eu tenha por aqui uma penca de tios e primos que poucas vezes consigo visitar. Talvez veja alguns deles nesse fim de semana.
Em meio a tudo isso, o motivo da minha vinda até aqui, que é o trabalho em Interlagos, desta vez o autódromo, nas corridas do Porsche GT3 Cup. A Fórmula 1, isso é questão meramente ontológica, tem apenas importância secundária. Talvez.
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