O autódromo de Interlagos, como costumam dizer os teens, paga de bonitão, e tal, mas está em meio a um lugar feio pra cacete. A foto aí de cima é da rua Manoel Teffé, a do portão Z, por onde tenho acesso ao meu modesto QG de trabalho durante o fim de semana. Foi aí que fiquei plantado por alguns longos minutos enquanto aguardava a carona pro Resort Magalhães agora há pouco, findo o primeiro dia de relevantes serviços prestados.
É um lugar de gente simples, talvez ocultado propositadamente pelos engomados nesta época quase festiva de GP de Fórmula 1 por não oferecer toda a beleza com que a categoria está habituada nos cantos e recantos paradisíacos que visita durante todo o ano. Chamou-me atenção, por exemplo, a garotinha de não mais que dois anos sentada na calçada a milímetros da rua onde os carros propiciavam um fluxo frenético. Ela aparece na foto, reparem que o motorista do Siena prateado teve o cuidado de dela desviar.
Enquanto aguardava Pedro Rodrigo, que é um quase motorista particular quando volto a São Paulo, acendi um cigarro – na verdade foram três, mas refiro-me a um em específico – e sentei-me ao meio-fio, como dizemos lá no Paraná, aqui chamam-no de guia. Ao que um garoto veio do outro lado da rua e, sem maior cerimônia, sentou-se ao meu lado. Na dele, sem puxar papo. Quem puxou fui eu, sob o pretexto inicial de passar o tempo. Conforme o andamento da conversa, talvez desse algumas risadas.
Alex, seu nome. Tem 13 anos e cursa o quarto ano do primeiro grau, ou ensino fundamental, como queiram. Foi conhecer a escola quando já tinha 10. É o caçula de cinco irmãos, o mais velho tem 22 e é o único que tem trabalho, todos moram com pai e mãe num casebre humilde, em cuja garagem a família dispôs-se, neste fim de semana de movimento atípico, a vender as garrafas de água mineral doadas pelo pastor de uma igreja qualquer para incrementar a renda que penso ser modesta.
Fio-me em tudo que Alex contou, se não por outras razões, por não ter nenhum motivo para dele duvidar. Acho-me competente o suficiente para perceber quando uma criança mente, e não pareceu-me ser seu caso. Posso ter passado um atestado irrefutável de incompetência, também, Alex seria o único a ter essa certeza.
Antes mesmo de conhecer a escola, Alex já conhecia a Fórmula 1. “Conhecia”, claro, é um eufemismo. Viu os carros de perto várias vezes, supõe que em todos os últimos cinco ou seis anos esteve nos boxes de Interlagos em algum dia do fim de semana do GP, nunca em domingo de corrida.
Como Alex consegue acesso aos boxes, para ver as máquinas de perto, como disse ter visto?, perguntará você. Foi o que perguntei a ele. Simples, respondeu-me. Pula o muro do autódromo num ponto onde supõe não haver seguranças, e sempre acerta, vai até a parte de trás dos boxes, de lá se vira. Irmãos, amigos e vizinhos costumam fazer a mesma coisa. Alguns, confidenciou, pulam o muro do autódromo no sábado e lá dormem por algum canto para no domingo verem a corrida. Alex e os irmãos nunca arriscaram um pernoite dentro do autódromo. Têm receio que algum guarda noturno os flagre.
Alex esteve hoje nos boxes, inclusive. Nos boxes? É. Tem três escadas lá, a do meio não tinha nenhum segurança, entrei, foi a justificativa que deu, com naturalidade. E lá dentro? Um segurança veio falar comigo, só mandou eu não chegar muito perto dos carros. Fiquei um pouquinho e depois voltei pra cá pra ajudar meu pai a vender água mineral. Venderam bastante? Hoje, nenhuma, mas no domingo vem bastante gente, até lá a gente vende tudo. Alex é um garoto confiante, nota-se.
Contou Alex que, na visita de horas atrás, ficou encantado com o carro vermelho. E já viu ou conversou com algum piloto? Não, nunca. Imagino que não reconheceria um piloto sem macacão, ou até que pudesse confundir com um piloto qualquer mecânico que vestisse um macacão – o que me lembra outra historinha interessante, vou contá-la aqui em breve. Mas, convicto, garantiu nunca ter visto um piloto de perto. Viu, sim, os carros, e também o que definiu como pedaços deles espalhados pelo chão.
Alex jamais conseguiu um autógrafo, ou um brinde. Mas um de seus quatro irmãos – são três rapazes e uma moça, e dos quatro ele me apontou três que vinham chegando da escola ou de visitas que chegou a descrever, o outro ainda devia estar no trabalho – já conseguiu alguns bonés e uma camiseta. Ficou com um boné, que tem até hoje, e vendeu os outros brindes. O irmão guarda, também, uma garrafa plástica autografada em Interlagos por Marcos, goleiro do Palmeiras. Não lembro de Marcos ter visitado a F-1, mas mantenho a fidedignidade de minha fonte.
E quem leva a torcida de Alex na corrida de domingo? Alonso, a resposta está à ponta da língua. Ouviu o nome na televisão, não sabia tratar-se do dono do carro vermelho que o encantou. Muito menos que estava torcendo pelo líder do campeonato. Sabe o nome do Alonso? Não, e ficou satisfeito quando lhe revelei prontamente que é Fernando. Tive a impressão de que pensou ser brasileiro, o tal Fernando Alonso.
Perguntei a Alex se acompanharia os amigos no arriscado sono muro adentro, de amanhã para domingo. Garantiu que não, reforçou o medo de ser surpreendido por um segurança. Mas garantiu que estará lá na segunda-feira, recolhendo latas. Lembrou com um sorriso que, depois do evento do ano passado, amealharam, ele e os irmãos, mais de cinquenta reais revendendo as latas coletadas pelo autódromo. Manifestou igual expectativa para a próxima segunda, enquanto observava as quatro peruas Blazer da Polícia Militar que rasgavam a Manoel de Teffé em alta velocidade, sirenes acionadas. Aconteceu alguma coisa lá pra cima, concluiu, acrescentando que toda hora tem disso.
Mas Alex sai respondendo a tudo que um estranho pergunta? E se fosse eu um policial, ou um segurança, ou um jornalista?, questionei-o. De bate-pronto, manifestou certeza de que eu não era nenhuma dessas coisas, foram essas suas palavras. Errou, Alex, mas não contei a ele que sou jornalista. Não é problema dele, afinal, se eu não soube dar rumo mais decente à vida.
O papo estava bom quando a carona chegou, com atraso de mais de meia hora. Despedimo-nos e fui embora, satisfeito por ter encontrado aquela espontaneidade toda num garoto de 13 anos.
O mundo precisa de mais espontaneidade. E Alex precisa aprender que é feio pular muros às escondidas.
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