domingo, 21 de março de 2010

Ayrton


Quando se é moleque, a visão do mundo é diferente. Difícil um moleque qualquer não ter as paredes do quarto ou as laterais do guarda-roupas abarrotada de pôsteres dos músicos, dos esportistas ou dos personagens preferidos. Fui um moleque normal, tendo isso em vista.

Comecei a ter olhos para o automobilismo com 11 anos, foi uma coincidência que já comentei aqui. O galo de briga da época, pelo talento e pela relativa supremacia, era um brasileiro. Ayrton. De quem minha única referência mais próxima, até então, era um calendário com a foto da Lotus da John Player Special, meu pai o havia ganhado de alguém que fornecia cigarros à mercearia da família. Nem sabia o motivo de ter guardado aquilo.

As três primeiras corridas de Fórmula 1 a que assisti foram vencidas por Ayrton. Imola, Monte Carlo, Cidade do México. Na quarta, ele liderava com um pé nas costas quando o motor do carro abriu o bico numa avenida qualquer do Arizona. Na quinta, liderou debaixo de um toró dos diabos até faltarem três voltas para o fim em Montreal. O motor deixou-o a pé de novo. Na seguinte, tomou a liderança de Prost na largada, o capote do Gugelmin suspendeu a corrida, na nova largada seu câmbio quebrou.

Não, aquele sujeito a quem tratavam como campeão do mundo não podia ser um atleta normal. Era um fenômeno, intuí. Passei a admirá-lo de modo até irritante. Os pôsteres do carro vermelho e branco, claro, começaram a aparecer na parede do quarto, e quando ganhei de presente uma moldura com vidro para fazer um quadro de um deles passei a viver um dilema tremendo, até porque maioria dos pôsteres eram impressos em frente e verso, e eu gastava um tempo danado, a cada três ou quatro dias, tirando grampo por grampo da moldura para nela pôr uma foto diferente.

O tempo passou, Ayrton já não vencia com tanta frequência quanto naquele distante contato inicial que tínhamos, ele sem nem imaginar a minha desprezível existência, passei a compreender que o lado positivo daquele esporte que eu admirava mais a cada dia – em grande parte por causa dele – não dependia de um compatriota ser o destaque principal, mas de haver grandes atuações. Ele sabia empreender grandes atuações.

O fim da trajetória de Ayrton coincidiu com o início de uma malograda carreira nas pistas, a minha. Estrearia no kart um mês e meio depois - participei de cinco ou seis corridas que eram bancadas com as economias do meu salário, não tinha o mínimo talento para a coisa, parei. Todos lembram o que faziam ou onde estavam no exato momento em que seu carro explodiu na Tamburello. Eu estava dentro de um carro de corridas. Era abertura do Paranaense de Automobilismo, vi a largada da F-1 pela tevê e fui encarar meu turno na vigia do Fórmula A de um amigo, no parque fechado do autódromo de Curitiba. A festa do sábado tinha me sugado energias e aproveitei para tirar um cochilo naquele cockpit apertado. Ali eu dormia, enquanto Ayrton se despedia.

Ayrton transparecia uma imagem profética. Parecia saber o que lhe reservava o destino com que seu ofício o acolheu. Aquelas imagens dos momentos que antecederam sua última largada falam por si, como o semblante em inúmeras de suas entrevistas. Tinha dele a impressão de um sujeito extremamente introspectivo, que não fazia questão de vender uma imagem alegre. Talvez não fosse um sujeito alegre. Talvez, mais um pobre menino rico. Em posses, em talento, em determinação, em carisma.

Quando Ayrton morreu, eu era jornalista por prática, termo de corredor de faculdade, havia coisa de dois anos, lidava com automobilismo há menos um e meio. Jamais escrevi ou falei, profissionalmente, sobre qualquer vitória sua. Lembro dos cumprimentos que recebi na época pela página especial que escrevi na edição de 3 de maio do jornal para o qual trabalhava. Usei recursos muito simples, mas diferentes para os padrões da casa.

Naquela mesma edição, o colega Miguel Portela, à época editor do noticiário regional – jornal de cidade pequena tem disso –, escreveu e publicou em sua página, como homenagem particular, um artigo intitulado “Senna, Senna, Senna...”. Ilustrou-o com uma caricatura de Senna que eu havia feito tempos antes, a grafite. Foi fotografada em autotraço e, publicada, ficou horrível. Sou metido a caricaturista, também. O original daquela caricatura, em sulfite A4, foi trazido a São Paulo por uma prima minha, Luciana, numa viagem que fez a Cascavel há anos-luz, ela prometeu reproduzir e me devolver. Nunca mais vi, nem a caricatura, nem a Lu.

Da corrida em que despediu-se até a disputa seguinte, em Mônaco, passaram-se duas semanas. Intervalo que, descobri tempos depois, Ayrton aproveitaria para uma viagem a Cascavel, minha cidade. Negociaria lá, com um político e empresário que morreu uns dois anos atrás, a compra de uma propriedade que não sei onde fica, foi isso que alguém me contou, hoje não faço a mínima ideia de quem tenha sido. Não posso me fiar na veracidade dessa suposta tratativa.

Não tive a oportunidade de conhecer Ayrton. Pena. Foi por torcer por vitórias dele nos GPs de Fórmula 1, mais por ser ele um atleta competente do que por ser brasileiro, que acabei me envolvendo com o automobilismo, meio do qual vivo e que ainda consigo admirar. Hoje, se vivo, Ayrton poderia estar no grid da categoria que movimenta Interlagos. Estou em São Paulo para narrar a corrida, e naquele palco que já foi de Ayrton seguramente muitos clichês serão lançados por mim e por todos, motivados claramente pela data que lhe é, na ocasião de agora, de certa forma devotada.

Nunca vi Ayrton, não sei de onde tiro uma pretensa intimidade para tratá-lo pelo prenome. Algo me deixa plenamente à vontade para isso.

É, Ayrton, são poucos os que chegam aos cinquenta com tanto prestígio.

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