terça-feira, 25 de outubro de 2011

Carta ao desconhecido

Escrevo sem saber para quem, na verdade. Mas não é pretensão minha vasculhar a identidade e nem a intimidade de alguém que empreende tanto esforço para avançar em suas metas. Talvez leia-me, meu incógnito interlocutor, e saberá que são endereçadas a ele minhas gentis considerações.

Refiro-me, a título de mero esclarecimento aos que não estão a par da conversa, ao distinto cidadão que teve de estender às altas horas o fruto de suas aptidões e teve de se submeter à chuva forte da última madrugada, atípica para o verão em que nossa primavera tem-se convertido, para adir a seus domínios um bem meu. Um automóvel, ser por vezes inanimado.

Automóvel que pode estar, a essa altura, sob melhores cuidados que os meus ou de minha esposa. Ela e eu, insensíveis, submetemo-lo por vezes ao relento, às noites frias, à chuva. Algo que tocou você, seguramente. Compadecido diante dos inconcebíveis maus tratos que supôs terem sido dispensados a ele, meu automóvel, você não teve dúvidas: levou-o para você. Desculpe-me pelo “meu automóvel”. É a força do hábito, sabe? Não me leve a mal, estou ciente de que ele agora é seu.

Sei que você é um cidadão atento e seguramente terá notado em seu estudo de campo que ali de onde você tirou meu automóvel, para a ele dar acomodações mais dignas, havia mais um. Imagino que você não tivesse um automóvel até então, e é isso que pregam algumas correntes. Se ali havia dois e em seus domínios não havia nenhum, nada mais correto que um deles passar a ser seu. Noto, também, que você tem bons critérios. Das parcas opções que lhe ofereci, escolheu um automóvel muito bom. Bem rodado, é verdade, apesar da pouca idade, espero que isso não lhe cause transtornos.

Longe de mim, nobre desconhecido, atribuir a você adjetivos de cunho pejorativo. Você, afinal de contas, está coberto de razão. Atua de acordo com as regras do sistema que eu, tolo e irresponsável, faço questão de contestar. É a seu favor que rezam as regras oficiais, com as quais não posso contar. Aliás, é uma classe bem organizada, a sua. A ponto de ter elevado ao posto máximo de uma hierarquia uma pessoa que, suponho, lhe seja companheira de ofício. Entendo, claro, que todos fazem o que é possível para melhorar as condições de um grupo ou meio que lhe seja afim.

Entendo, igualmente, que suas condições de trabalho não eram as desejadas, e por isso as mudanças nas regras, que ampliaram suas benesses, diminuíram as satisfações que você tem de dar a nós, que injustamente nos julgamos tão superiores a tudo só por sermos gente honesta. Um parceiro seu me disse, tempos atrás, que ser honesto não leva ninguém a nada. Você acha que eu deveria tê-lo escutado?

Sua próxima noite de sono será mais tranquila e prazerosa que a minha. Nada mais justo. Não posso e nem devo vislumbrar vantagem em tudo e afinal, enquanto eu gozava de uma noite de sono tranquila algumas horas atrás, você exercia, exausto e sob condições adversas, o ofício que elegeu em seu minucioso estudo de vantagens e desvantagens.

Se houver a oportunidade de um contato nosso, e disso já estou convencido, não vou tentar pôr em prática nenhuma das 12 ou 13 reações com que minha mente se atreveu a planejar nas últimas horas. Em primeiro momento, por mera praticidade. Sou péssimo com burocracia, lidar com as gentes dos Direitos Humanos exigiria aptidão para papéis e protocolos. Mas, havendo um encontro nosso, vou, sim, tomar a liberdade de lhe solicitar uma consultoria. Sabe, distinto cidadão, o ofício que elegi para mim é um pouco menos gratificante que o seu. O da minha esposa, idem, imagino que ela lhe vá solicitar também algumas orientações. Seguimos, ela e eu, sob a necessidade de um jogo-de-cintura por vezes indigesto para colocar em dia o carnê que acompanhou nosso automóvel... Perdão, seu automóvel. Não somos bons em planejar essas coisas. O seu método é mais prático. Talvez tenha nos faltado um pouco de ousadia para pô-lo em prática três anos atrás, quando, tolos, adquirimos esse carrinho. Quando aos pagamentos, não se preocupe, resolvemos isso por aqui, mesmo.

Por falar na minha esposa, ela era quem utilizava o automóvel que agora está sob seu domínio. É possível que isso a deixe um tanto descontente, mas não vá se preocupar com bobagens assim. É coisa de casal, a gente administra sob o teto do lar. Você, douto autônomo, acabou até me oportunizando uma boa sensação de dever cumprido: não imaginei que tivesse capacidade e presença de espírito para explicar a meu filho de quatro anos o que havia acontecido e que tínhamos um pouco de pressa e que ele teria de ir conosco à delegacia de polícia, um ambiente que suponho ser-lhe bem familiar. Você precisava ter me visto fazendo isso, foi demais. Aquele papo de pai para filho.

Meu menino surpreende quando manifesta noção do valor das coisas, mas não as diferencia por preço. Talvez por isso, mesmo triste porque não tínhamos mais “o nosso carro”, ele mostrou-se extremamente sentido pelos brinquedinhos e doces que mantinha sistematicamente armazenados num compartimento qualquer ao alcance do espacinho que ocupava no banco de trás. Fique tranquilo, já esclareci para o menino que o carro não é nosso, mas seu. Ele, o menino, agradeceria bastante se você lhe pudesse devolver a elevação de assento que inadvertidamente acabou levando consigo – não tenha pressa, pode ser mês que vem, até sugiro que seja por volta do aniversário dele. Tinha algum apego àquilo. Mas só se não lhe for incômodo. É bobagem de criança.

Encerro por aqui, não quero lhe tomar tanto tempo. Talvez você esteja fora do país tratando dos assuntos de seu ofício e não o tenha em dose a dispensar à minha prolixidade. Peço que não se atenha aos erros ortográficos que eu possa ter cometido – aliás, seu ex-colega a quem me referi há pouco já fez piada, também, por minha preocupação excessiva em usar corretamente conjugações, pontos e concordâncias, falou-me que na organização de vocês ninguém dá a mínima para isso.

Peço que não me leve a mal, também, se eu fugir um pouco ao contexto dessa nossa conversa quando estivermos frente a frente. Vá relevando, desde já, qualquer mudança repentina de postura. A correria dos últimos dias tem me deixado um tanto confuso, eu às vezes me embanano com as palavras.

A foto que postei aí acima, insigne interlocutor, foi a única que consegui do seu novo carrinho. É de uns três meses atrás, quando dei-me o luxo de providenciar no meu próprio ambiente de trabalho, um autódromo, a instalação dos pneus novos que havia acabado de adquirir para ele. O senhor ou um seu cliente terá boa borracha para usar durante longo tempo. Sua comodidade é uma preocupação minha, afinal. Mesmo que eu não quisesse, meu país varonil preocupa-se bastante com você. Um dia, penso, ele vai se preocupar comigo, também.

Saudações.

P.S.: Imagino que seu grupo tenha alguém craque em computadores. É muito incômodo eu lhe pedir que encomende ao nerd da turma cópias dos CDs que estão em seu novo porta-luvas? Se puder, me mande a conta. Você sabe onde eu moro, afinal.

2 comentários:

RonyVox disse...

PUTZ MEU IRMÃO!!!!
SEM PALAVRAS PRA EXPRESSAR MINHA TRISTEZA JUNTO A VCS,AINDA MAIS SABENDO Q VC E UM CARA HONESTO E BATALHADOR.ISSO DOI MUITO,SABENDO QUE NESSE PAIS SO SE FERRA GENTE COMO A GENTE,QUE NAO MEÇA ESFORÇOS PRA CONQUISTAR ALGO!!!!MAS DEUS TE DARA EM DOBRO PODE APOSTAR.ABRAÇOS DO SEU SEMPRE AMIGO RONY VOX.

@DaniloGaidarji, via Twitter, disse...

Acabei de ler texto de @lucmonteiro em seu blog, sobre o furto de seu veículo. Foi um lorde galês.